VER A REALIDADE PARA AGIR:debate sobre missão e valores da BASE-FUT (I)


Texto de José Ricardo, dirigente nacional da BASE-FUT e com uma vasta experiência na economia social e no associativismo.O texto é um contributo para as tertúlias que a BASE-FUT do Porto tem organizado sobre a missão e valores desta organização .Publicamos o texto em duas partes.Eis os primeiros 10 pontos:

A reflexão e a experiência de vida informam-nos que as verdades de ontem não são as verdades de hoje e que estas, por muita convicção que tenhamos nelas, poderão não ser as verdades de amanhã. A evolução da humanidade não tem sentido único nem o caminho que muitas vezes se nos apresenta como inevitável é a única alternativa.
Nós temos o direito e o dever de interferir na realidade, influenciando a sua evolução para uma sociedade mais justa, mais humana e em harmonia com a natureza. Mas para intervir é necessário caracterizar a realidade onde nos movemos, criticá-la à luz dos nossos valores e estabelecer objectivos coerentes com a nossa Missão.

UMA VISÃO SOBRE A EVOLUÇÃO SOCIAL, ECONÓMICA E POLÍTICA

1. A industrialização operou um enorme movimento migratório das populações rurais, quer interno quer externo, em busca de emprego e melhores condições de vida que as empresas industriais ofereciam. Este movimento produziu alterações profundas ao nível social, com a desagregação da família patriarcal alargada, a sua nuclearização e difusão pelos territórios. Levou também ao crescimento acelerado das cidades do litoral, à desertificação do interior e ao fim da agricultura de subsistência. Segundo as estatísticas, em 2005, habitavam os distritos do litoral de Viana do Castelo a Setúbal, com uma superfície de 25.420 Km2, cerca de 7.607.000 pessoas. Ou seja, 72% dos portugueses habitam 28% do território, enquanto 28% dos portugueses habitam em 72% de território.

Não se perspectivam quaisquer políticas que invertam este movimento. Há vários séculos que os donos de grande parte do Alentejo são moradores em Lisboa e linha de Cascais, vivendo à custa da cortiça, das rendas e das coutadas. O Centro e Norte interior estão a ficar quase igual, com a migração dos descendentes dos proprietários rurais para as cidades do litoral, originando o progressivo abandono das terras e a crescente desertificação populacional do interior.

2. A globalização capitalista impôs uma lógica que se tem mostrado irreversível. Quando uma empresa deixa de ter mercado para os seus produtos ou serviços encerra ou diminui a sua actividade e os trabalhadores recebem subsídio de desemprego e formação: é a flexi-segurança. Se a empresa não é suficientemente rentável para os seus accionistas, o capital anónimo emigra e a empresa vê as suas acções em bolsa descerem velozmente e entra em dificuldade financeira. Se o capital rende mais na especulação do que na produção de bens, a empresa produtora encerra. Este movimento acelerou nos últimos 20 anos. Em Portugal, os donos de muitas empresas industriais em lugar de se modernizarem e ganharem competitividade, encerraram as portas e encaminharam o seu capital para a especulação imobiliária, procurando ganhar mais dinheiro com o menor esforço.

3. Com a revolução electrónica em marcha vai acentuar-se a capacidade de produzir mais bens com menos trabalhadores. Com a livre circulação de capitais, as empresas que utilizam mão-de-obra extensiva deslocam-se para os países onde os trabalhadores têm menos direitos. Esta dinâmica é irreversível. As empresas nascentes em novas tecnologias não irão ocupar toda a mão-de-obra saída das muitas empresas encerradas de têxtil, mobiliário, metalomecânica, eléctricas, etc.

4. Com as revisões do Código do Trabalho liberalizando os despedimentos prometeu-se mais investimento, mais empresas, mais riqueza e mais emprego. Na realidade apenas levou a que os trabalhadores sejam forçados a mais baixos salários favorecendo a acumulação capitalista e o agudizar das desigualdades.

5. Em Portugal como na Europa as grandes empresas industriais foram progressivamente desmembradas. As subcontratações e a fragmentação do processo produtivo por unidades industriais independentes retiram qualquer capacidade de controlo sobre o produto final e comercial por parte dos trabalhadores. Em primeiro lugar pela incapacidade de controlar as vias de comercialização e em segundo lugar pela pouca competência dos trabalhadores em organizar-se em comissões inter-empresas e definir estratégias comuns.

6. O controlo das redes de comercialização através das Marcas detidas por empresas de capital invisível e anónimo, sem ligação entre os produtores e os consumidores, fazem da maioria dos pequenos e médios patrões nacionais, intermediários, meros empregadores e capatazes ao seu serviço. Exemplo desta situação é o que se passa com a indústria de vestuário.

7. O capital financeiro e apátrida continua a dominar a economia dos países europeus com lógicas de exploração desenfreada dos recursos naturais e dos trabalhadores, seja no papel de produtores como de consumidores. Esta exploração é uma característica intrínseca do sistema. A liberdade de movimento do capital, ao toque de um clique, entrando e saindo de um país, instalado em plataformas secretas que não se submetem ao poder democrático dos países, de onde vão retirar os seus lucros, desestabilizam a economia de países, mesmo dos europeus. Utilizam as tácticas de camuflagem da guerrilha.

As reformas anunciadas, em função da crise por que passamos, serão uma oportunidade perdida para que tudo fique na mesma, se os movimentos sociais não souberem empurrar os seus representantes políticos, sindicatos e movimentos sociais autónomos para as reformas necessárias. Os offshore continuarão a ser os paraísos fiscais como até aqui porque o grande capital financeiro que domina o Mundo tudo fará para travar as intenções de reforma. Já foram encontrados alguns bodes expiatórios e os profetas do sacrossanto Mercado já encontraram coragem para voltar a defender mais do mesmo.

8. Os países que apresentam melhor defesa face à exploração do capitalismo financeiro global são os que optarem por um Estado mais cooperativo, interveniente e com uma maior distribuição do rendimento, como os países do Norte, ou com o sistema de Capitalismo de Estado, como a China, com um controle apertado sobre as liberdades e direitos sociais. Portugal, com o agudizar da crise poderá criar condições para regionalizar mais o poder e permitir uma maior participação dos cidadãos na vida colectiva ao nível político e económico.

9. A pobreza actual não tem a mesma natureza da pobreza do século passado. A população rural convergiu para as cidades, como acima foi referido. Com a crise económica que presenciamos e que vai continuar os trabalhadores sem emprego das cidades não têm sequer a agricultura de subsistência que os seus antepassados tinham. A crise das famílias que se avoluma não deriva apenas dos encargos financeiros contraídos, sobretudo na habitação, mas também a redução das expectativas que alimentavam. A pobreza actual comporta perigos de desagregação social que não têm paralelo no passado. A pobreza do mundo rural mantinha a educação dos filhos, quer escolar quer de hábitos de respeito e higiene. A pobreza dos bairros de cidades desagrega as famílias e abandona os filhos, colocando-os no caminho da marginalidade e exclusão.

10. Apesar da enorme evolução após o 25 de Abril ao nível da educação e do ensino, a maioria dos trabalhadores portugueses estão mal preparados e apresentam baixas competências para as empresas cada vez mais exigentes e tecnológicas. É de esperar portanto que a imigração continue a ser uma porta de saída profissional e que continuem os Quadros Comunitários de Apoio, com reforço para a formação e o desenvolvimento regional.(continua)


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