TEMPO DE TRABALHO,FERIADOS E MISSÃO DA IGREJA!

Pela profundidade do texto e interpelação que faz em geral e, em particular, aos católicos, publicamos na íntegra o texto de Joaquim Mesquita, sindicalista, que o mesmo enviou ao Cardeal de Lisboa e demais Bispos, bem como a vários grupos de cristãos ligados ao mundo do trabalho.


Até à época do Renascimento, o clero da Igreja católica garantia ao povo um número significativo de feriados, que chegavam a ser mais de cento e cinquenta em alguns países da Europa. Na actualidade, dos poucos que restam em Portugal, decidiu abdicar de dois feriados religiosos – sob a condição de ser eliminado igual número de feriados civis.

O aumento de tempo de trabalho diário, semanal e anual implica, além da perda de tempo de descanso, uma quebra de salário. E torna-se num exemplo paradigmático das consequências dos mecanismos perversos próprios do neoliberalismo que tem vindo a transferir o poder dos cidadãos e das suas estruturas democráticas para as entidades privadas. Através do seu crescente domínio, os accionistas procuram aumentá-lo desregulando o mundo do trabalho e destruindo o Estado Social baseado na solidariedade: é, no fundo, a consolidação da escravatura dos tempos modernos. E os governos, cúmplices destes mecanismos, legislam para que “o monstro” continue a engordar à custa do sofrimento do povo, e do povo que trabalha e tem de sobreviver com as regras de um jogo que não é seu. É que, nesse jogo, são sempre os pobres que perdem, porque os governos dos Estados são cúmplices e se empenham em viciar as regras.

Feriados, convívio - partilha e descanso

Em cada feriado religioso proporciona-se a vivência cristã: a consolidação da fraternidade no encontro, na partilha, na comunhão e no perdão. E também pelo convívio e pelo descanso. Com a eliminação destes feriados, que agora se anuncia, anula-se em proporção este espaço de possibilidade de humanização.

Entretanto, na comunicação social, mas também nas nossas igrejas, registamos afirmações sobre os privilégios dos portugueses, que recebem os subsídios de Natal e de férias e têm subsídio de desemprego. E sobre estilos de vida e de consumo acima das suas possibilidades, pelo que esta crise até pode ter o seu lado positivo para nos levar a reflectir sobre valores esquecidos e nos conduzir a um modo de vida sóbrio…

A primeira reflexão que me ocorre é sobre o que hão-de pensar, quando ouvem isto, aquelas gentes que sempre viveram em condição de pobreza e de crise, com um orçamento insuficiente para uma vida digna, sobrevivendo com enormes sacrifícios.

A segunda reflexão leva-me a concluir que não encontro uma mensagem consistente e coerente de esperança nas posições do clero da Igreja católica capazes de transmitir alento aos pobres, aos mais fracos, aos marginalizados e aos injustiçados do nosso tempo.

Partilha do poder ou missão profética?

Por último, tenho de concluir que as posições da Hierarquia, de que esta dos feriados pode considerar-se como paradigmática, orientam-se no sentido de garantir a partilha de influência com o poder político. Sendo certo que alguns Bispos têm tomado corajosas posições de denúncia, os sinais percepcionados não são de preocupação com a justiça, mas de equilíbrio entre estruturas de cúpula, onde os visados, concretamente os trabalhadores, estão excluídos. Não só os trabalhadores como os cidadãos e os crentes desta Igreja, os cristãos. E também não, tanto quanto eu saiba, os que se assumem como militantes dos movimentos da designada Acção Católica. Ao que parece, apenas o Vaticano será consultado.

A ideia que subsiste é a da inevitabilidade perante as decisões políticas tomadas, da necessidade de resignação e conformismo perante estruturas demasiado fortes e aparentemente intocáveis.

Esta mesma ideia de resignação é a que prevalece na sociedade, como promovida pela Igreja católica, ouvindo-se citações alusivas como ”Felizes os pobres…” ou “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus”.

De facto, o objectivo deste sistema é reduzir a vida do povo à situação de pobreza e de escravatura. É interessante como algumas das manifestações de empatia relativamente a esta realidade as tenha encontrado na literatura de ficção: “Os escravos de ontem sangram no tempo de hoje, as naus negreiras ainda cruzam os oceanos… Os ricos enriquecem, os pobres empobrecem. E os outros, os remediados, vão ficando sem remédio… Quando inventam assim maldades sobre o povo, é para abençoar as maldades que se vão praticar sobre ele” (Mia Couto). Afinal, ainda temos profetas, no nosso tempo!

Promover a fraternidade!

A eficácia da Igreja na sociedade não se mede pela sua influência diplomática ou capacidade de organização. Também não se avalia pelo número daqueles que se dizem crentes. Mede-se, sim, pela capacidade de promover a fraternidade e de construir comunidades fraternas, convidando à comunhão, à partilha e à conciliação, e opondo-se a um mundo marcado pelo ódio e o fratricídio. Mede-se, também, pela capacidade que os seus membros demonstram em inspirar e promover a solidariedade nas estruturas em que se encontram comprometidos, no esforço de construção de uma sociedade mais justa. Esta participação é, a meu ver, uma forma legítima, necessária e adequada de compromisso cristão na sociedade, e na medida em que resulte de uma vivência comunitária e teologal, e em resposta aos apelos da consciência.

Se a Igreja pretender afirmar-se como uma estrutura paralela às que existem na sociedade, acabará enredada nos jogos de poder, cairá na tentação de procurar conciliar o inconciliável e abençoar debaixo do mesmo tecto o explorador e o explorado, o faminto e o sobrealimentado, o oprimido e o opressor. Esquecerá que os direitos humanos são, para o homem, de natureza ontológica, e passará a tratá-los no âmbito jurídico e negociável, sujeitos à lógica darwinista e à lei do mais forte ou mais apto, tão ao gosto do liberalismo.

Redizer as Bem-Aventuranças

O cristão sabe que tem como missão colaborar na construção de uma sociedade justa e fraterna, e o mundo do trabalho constitui um teste importante a essa missão. Este é um momento importante que a Igreja deve aproveitar para redizer as Bem-Aventuranças. Os pobres, os famintos, os que choram, os que sofrem por causa da justiça são de facto bem-aventurados porque pertencem, agora, a uma família que não permite situações de pobreza e de fome a ninguém, que consola os que choram e apoia os que sofrem por causa da justiça. É uma família empenhada em executar o plano de Deus: libertar os cativos, curar os cegos, libertar os que sofrem, porque anular o sofrimento humano é a glória de Deus. Empenhada ainda na missão de promover a solidariedade e responsabilidade mútua: «O Senhor disse a Caim: ‘Onde está o teu irmão Abel?’ Caim respondeu: ‘Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?’». Este episódio bíblico relata precisamente um período de transição conflituosa entre dois sistemas económicos, o da pastorícia nómada para a agricultura dos povos sedentários, resolvido, como se sabe, de modo violento.

O momento que vivemos não pode deixar de constituir um desafio à Igreja. É uma oportunidade que tem de realizar a sua missão, de expressar a razão da sua esperança: ser protagonista da construção de uma sociedade baseada na justiça e na fraternidade, ainda que não o consiga de forma perfeita.

Embora militante e activista em movimentos de natureza ou inspiração cristã e organizações sindicais, não é nessa condição que faço esta reflexão. É simplesmente como cristão, e como cristão leigo. Apesar de ser uma tarefa dolorosa, não posso deixar de a executar, porque constituiria uma violação da minha consciência. Porque, diz o aforismo popular, profundamente verdadeiro, “a consciência é a voz de Deus”.

(JOAQUIM BRITO MESQUITA)

PS: O título e subtítulos são da nossa responsabilidade!

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