POR JOÃO VILELA
Quando estudava na faculdade, devo reconhecer,
tive professores extremamente honestos. Nunca nos esconderam o futuro que nos
esperava, as agruras dele, e menos ainda o modo como, diligentemente, nos
estavam a preparar para o enfrentar. Recordo com especial carinho certa aula em
que, propondo o docente uma alteração absurda de horário, enfrentou a nossa
recusa unânime com uma frase onde se misturavam praga rogada com uma certa
futurologia: «os senhores, aqui, tudo exigem, mas quando acabarem o curso e
estiverem na caixa do Continente, tudo aceitam!».
Não nos ocorreu – e esta autocrítica devemos
fazê-la – perguntar que opinião tinha ele sobre estar a formar historiadores
para que estes, em vez de investigarem ou leccionarem História, acabassem a
registar compras na caixa do Continente, ou do Jumbo, ou doutro hipermercado
qualquer. Duvido que a resposta fosse particularmente progressista, agora que
penso nisso. Historiador que era, acostumado a certos tiques de adivinho comuns
à seita, o homem dessa vez acertou: são inúmeros os meus colegas de então em
caixas de supermercado. Em restaurantes de fast-food. A vender porta-a-porta,
ou, como eu, a trabalhar em call-centers.
A nossa sorte é parecida à dos nossos pais
Fundamentalmente, a sorte que nos tocou foi
muito parecida com a dos nossos pais, a dos nossos avós, a dos nossos bisavós,
a de centenas de gerações antes da nossa num país onde as classes dirigentes
sempre aceitaram de bom grado um papel de segunda linha no concerto das
economias. Há certamente qualquer coisa de respeitável na veneração que os
capitalistas portugueses demonstram pelas tradições. E a tradição multissecular
de uma economia de trabalho barato, indiferenciado, intensivo, gerido à bruta,
para produzir o rebotalho que mais nenhum país quer fazer, conservam-na eles
com os cuidados e os rigores de quem conserva uma identidade nacional.
Podem mudar as formas, e os nossos avós terem
sido camponeses, os pais operários de calçado no Ave, ou empregados de balcão a
vender agulhas, e sermos nós, hoje, telemarketeers, first line agents,
business-to-client managers, ou door-to-door salesmen (coisas que
despojadas do inglês para o estilo, na realidade querem dizer «vendedor», «vendedor
ao telefone», ou pouco mais): o conteúdo precioso de muitas horas, más
instalações, material de trabalho antiquado e em mau estado, supervisores (que
dantes eram capatazes, contramestres, feitores, mas faziam a mesma coisa) mal
encarados e brutos, algures entre o cão-de-fila e o sonho de subir na vida a
pisar os outros, isso nunca desaparece. É o que é distintivo da burguesia que
temos. É assim que ela mostra ao estrangeiro a massa de que é feita, e o
destino que reserva ao povo.
Ninguém tem contrato de trabalho!
Já trabalhei em diversos call-centers. Uns sem
luz natural 8 horas por dia. Outros sem esponjas para os headsets, deixando
orelhas gretadas e ouvidos a zunir. Outros com pausas para ir ao WC contadas ao
segundo. Outros ainda em que nos davam um pedaço rasgado de lista telefónica,
um telefone, duas folhas A4 com «o produto» e se zangavam quando não vendíamos.
Todos tinham, contudo, um conjunto de coisas em comum: ninguém tem contratos de
trabalho (e a referência, ténue, à legislação laboral, embate no exaspero de
quem manda e diz que «isso da lei só empata, antes mau trabalho que
desemprego»); ninguém ganha mais do que um salário de fome; ninguém suporta a
cadência infernal das chamadas, a pressão para as vendas, as desandas porque
não se cumpriram objectivos, as desculpas esfarrapadas quando os clientes já
foram assediados dezenas de vezes «mas aquele teu colega dá-lhes a volta». E
sobretudo, um ponto é comum a todos: a repetição exaustiva, incessante,
maquinal, ainda mais repetitiva que o script que se lê e do que não que se leva
do cliente, de que se sofrermos no princípio, um dia, mais tarde, lá para a
frente, numa altura que ninguém sabe quando é mas há-de vir, seremos
recompensados com leite, mel, e quatro dígitos de salário.
A exploração
A certeza de que o princípio, quando se tem de
sofrer, é um princípio que nunca chega ao fim, rapidamente se torna presente na
consciência de quem trabalha no ramo. Não com esta gente que espera que tudo
aceitemos na caixa do Continente (ou no posto da linha), e para quem é
indiferente se produzimos barcos para a Polónia, sapatos para a Suécia, ou
inquéritos telefónicos para a Grã-Bretanha, assegurado que está o permanente cash
flow dos seus milhões em lucros e dividendos.
O único fim para este princípio que nunca mais
acaba há-de sair não dos objectivos, nem dos prémios, nem do currículo, nem do
cumprimento escrupuloso de todas as mirabolantes formas de forçar mais trabalho
e produzir mais lucro a troco de migalhas que os gestores possam inventar. O
fim deste princípio é o fim da exploração, imposta pelas mãos dos próprios
operadores. Somos nós que atendemos. Somos nós que vendemos. Somos nós que
ligamos. Somos nós que mandamos. Nenhum call-center existe sem nós – que nenhum
call-center exista, connosco, se formos explorados e maltratados. Dizer não, decididamente,
todos juntos, o é a única forma de termos o leite e mel que eles prometem e
nunca nos dão.
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