CARTA A D. CLEMENTE, BISPO DE LISBOA!

 Carta enviada por Joaquim Mesquita ao novo Cardeal de Lisboa, D. Manuel Clemente.Sindicalista e militante dos movimentos de trabalhadores católicos e da BASE-FUT, Joaquim Mesquita quer uma igreja que exprima os anseios dos pobres, fazendo justiça aos humildes.
 

«Permita que dirija a V. Reverência algumas palavras neste momento, agora que assume a tarefa de presidir às comunidades cristãs católicas deste país, que muito nos honra e nos transmite esperança. As minhas felicitações. É por esta esperança que me atrevo a endereçar esta missiva. Porque os pobres e os marginalizados do nosso tempo aguardam o anúncio de uma boa nova que só a Igreja pode fazer: de que todos somos irmãos no mesmo Pai, desse *Deus que é Pai, mas sobretudo é Mãe*. É esta Igreja que tem de se manifestar como sacramento do Reino: *“Vede com eles se amam”*. Talvez por isso tenha iniciado Kierkegaard um dos seus tratados, dizendo: “Estas são reflexões cristãs; portanto, não falarão de amor, mas das obras do amor”.

 Há alguns meses enderecei aos Reverendíssimos Senhores Bispos uma mensagem, que reproduzo, porque decerto dela não terá conhecimento, e em que dizia: 

*Em certo momento da História da Humanidade, à multidão dos marginalizados foram proclamadas as bem-aventuranças. Alguém lhes fez perceber que vivendo em fraternidade era possível enxugar as lágrimas aos que choravam, matar a fome aos que entre si estavam famintos, fazer justiça aos humildes (pobres em espírito). Alguém fez entender a esta multidão que eram irmãos no mesmo Pai. E daí, partilhando, o milagre da multiplicação do pão concretizou-se.* 
O trabalho tem contribuído para o aparecimento de uma multidão de inadaptados e excluídos, devido a modelos reguladores desumanizantes. Uma minoria usa o trabalho como mecanismo para dominar uma imensa multidão de gente que empobrece. A este mecanismo junta outro, a manipulação perversa do sistema monetário. Pretende dominar precisamente pela pobreza, pela mão estendida. É assim que os que fazem parte dessa minoria mostram o seu poder, apresentando-se à sociedade como benfeitores.*
 A voz dos excluídos do nosso tempo transporta uma mensagem que não deve ser ignorada, e apresenta um desafio aos valores e princípios que a sociedade encerra. É-lhe devida uma atitude e uma resposta, também. Estes marginalizados aguardam que alguém lhes proclame as bem-aventuranças, que lhes digam que terminou o tempo das lágrimas e da fome, porque o Reino está a chegar: ele chega sempre que há alguém que se dispõe a viver em comunidade fraterna. E desse modo os mecanismos injustos e perversos são postos a nu, e denunciados.* 
Os pobres do nosso tempo precisam perceber que não estão sós. Que quem lhes anuncia um mundo novo está com eles, que sente e partilha a sua vida e as suas angústias. É no estar e na maneira de estar que os pobres e excluídos descobrem que os que lhes anunciam uma nova era são agentes portadores de carismas.* É sempre tempo de proclamar as Bem-Aventuranças, de proclamar a Boa Nova, de banir anátemas e ghettos, de fazer o milagre acontecer. É este o tempo da Igreja, onde todo o cristão tem uma tarefa a cumprir: contribuir para uma sociedade fraterna.* 

O povo deste país vive alterações dramáticas que entende injustas na medida em que resultam numa profunda desumanização. A dignidade humana é gravemente ferida quando é quebrado o sentido do único destino da humanidade: o caminho da fraternidade. Socialmente reflecte-se na perda do valor da solidariedade. Por isso, este povo, que sofre, sente que o respeito pela sua dignidade é ignorado. Percebe que lhe é negado o exercício e o usufruto de direitos humanos, por um quadro legal em mudança preocupado em garantir privilégios a uma aristocracia que encontra agora um momento favorável para se afirmar. E percebe que é por isso que é espoliado e que sofre a pobreza numa sociedade cada vez mais desigual: *“Os ricos enriquecem, os pobres empobrecem. E os outros, os remediados, vão ficando sem remédio”*. 
Por vezes, o mais doloroso é a argumentação que justifica as desigualdades e culpabiliza a vítima. Em nome de uma economia abstracta contabilística, mais exactamente em nome de uma economia de casino, vital à ambição de alguns, negam-se os mais elementares direitos à generalidade dos cidadãos através da chamada “Reforma do Estado” ou “Refundação do Estado”. Ou seja, pretende-se que com um Estado minimalista (afinal pródigo para o sector financeiro, ainda que fraudulento e corrupto…) tudo seja objecto de negócio, como se um cidadão que vive do seu salário tivesse capacidade financeira de responder às leis do mercado em áreas como o ensino, onde os pobres estariam cada vez mais excluídos; ou como a saúde, onde já são alarmantes as dificuldades de acesso aos cuidados médicos e aos fármacos, situação que já poderemos classificar de eutanásia. E como pode aceitar a consciência ética de alguém que a saúde seja objecto de negócio?!
 Votado à pobreza, à doença, ao sofrimento e até ao menosprezo, este povo sofre o mesmo destino de Job, ainda que o Acusador, hoje, seja outro(s). No passado, era sinal de bênção uma vida longa e uma descendência numerosa. Penso que ainda hoje o será. Este país parece, assim, amaldiçoado. O sofrimento toca de forma especialmente grave os idosos na doença; a emigração assume um carácter de fuga; e as famílias não querem gerar filhos, quantas vezes por condicionalismos de ordem laboral, cujos mecanismos perversos geram multidões de inadaptados e marginalizados. E gente sem esperança desiste de viver… Este é um momento da História que constitui para a Igreja uma ocasião de exercer a sua missão, profética na denúncia de um mundo injusto e de anúncio da fraternidade universal, da qual tem de ser o garante: *“Eu nunca te esqueceria”*.

 Espero, com esta mensagem, contribuir para a reflexão e partilha que todos como comunidade humana e cristã temos de suscitar, na procura da verdade e da justiça, como pilares de soluções sustentáveis. Move-me a minha consciência como cristão. Mas também o desafio que me dirigiu um dos nossos Bispos, há já mais de uma década: “Vá provocando e incentivando todos os irmãos na Fé, em que os bispos também se contam”. Certo das bênçãos do Pai a esta Comunidade, de que faço parte, despeço-me apresentando os meus respeitosos cumprimentos. »

Joaquim Brito Mesquita Paróquia de S. Pedro de Pardilhó, 12 de agosto de 2013

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